Num sete de dezembro muito distante, em uma de minhas peregrinações ciclísticas pelo continente americano, aportei num pequeno povoado no interior da Guatemala - El Chol. Ruas de terra, uma hospedaria, um orelhão e uma bonita igrejinha na praça central, agora cercada de barraquinhas com produtos e atrações diversas por conta festividades de Nossa Senhora da Conceição que seria no dia seguinte, coincidentemente meu aniversário. Decidi aproveitar o feriado para um dia de descanso aos pedais. Sentei-me às escadarias do cemitério e ali preparei meu almoço enquanto assistia a um campeonato de tiro ao alvo no campo próximo; parte dos eventos que preenchiam a semana de festas. Carlos, um dos organizadores dos eventos, figura exótica com seus cabelos de Maradona naquele povoado predominantemente mestiço, se acercou e começamos a conversar. Disse que não encontraria hospedagem na cidade, pelas festividades e prontamente ofereceu a casa de “su mamá” para pernoite. Embora inacabada, já seria um porto seguro das intempéries, disse. A amável recepção me convenceu a descansar uns dias mais. Dia 8 assisti a procissão, seguida pela saída do “Torito”, um boi feito de bambu e papel com centenas de fogos amarrados em sua estrutura e que corria entre a multidão. O operador, sob aquela chama ambulante, vestia duas ou três peças de roupas de algodão e se encharcava, numa técnica quase eficiente de evitar queimaduras. E era nada menos que o próprio Carlos. Para completar o espetáculo pirotécnico, fogos de artifício deslizavam em cabos de aço logo acima de nossas cabeças. Lembrando que minha estatura estava bem acima da média local, para os quais os cabos foram calculados. Já descansados das festividades do dia anterior, sentamos para jantar tortilhas com feijões “refritos” e conversar sobre a vida. “Coma más, Luizito, estás tan flaquito!” repetia dona Laura, mãe de Carlos de seu fogão de lenha. Ele iria começar a montagem de um grande presépio que quase tomava toda a sala de estar. Acho que uns 3 por 7 metros. Um rio enorme de cera e casinhas antigas que eram heranças de seu avô. Confessou-me o sonho de ter “muñequitos” com movimento, que seu irmão o havia enviado um saquinho de motores do Alabama, mas que não tinha ideia de como usá-los. Respondi prontamente que poderia ajudá-lo, que sabia um pouco e motorzinhos e engrenagens e poderíamos tentar. Daquele jantar saiu um acordo e, no dia seguinte, Carlos , seus filhos e amigos converteram um quartinho em minha oficina, onde a única ferramenta elétrica era uma furadeira muito antiga. O esmeril era a manivela, na qual garotos disputavam a vaga de força motriz. Os três dias se converteram em um mês. Os mecanismos começaram a funcionar, com a ajuda de ávidas crianças que atendiam aos pedidos mais inusitados, como se fosse uma brincadeira de rua: câmaras de bicicleta, bambus fininhos como um canudinho, elástico de dinheiro “do amarelo”, cera roubada do altar da igreja... Carlos, artista nato, cuidava das carinhas minúsculas de papel machê, Rosário, sua esposa, dos figurinos delicados para vestir os esqueletinhos de bambu e arame. Um sonho foi tomando forma. O primeiro a surgir foi o homem do poço, com seu misterioso baldinho que sempre se soltava, quase duas da madrugada, nos hipnotizando por longo tempo antes de ganhar uma cabeça e vestimentas. Vieram outros: a moenda de cana movida por uma roda de água, os incansáveis serradores, o pescador sem sorte à beira do lago e até um pássaro batendo asas ao topo de um tronco; que inspiraria um anjo décadas depois. Os natais de minha infância têm cheiro de panetone recém assado e barulho de avelã estourada na dobradiça da porta. Mas o Natal de El Chol ocupou um lugar especial em minha memória, com olhos brilhantes, sabor de tamales recém cozido e amizade. Em janeiro, nó na garganta e olhos rasos, seguimos minha bicicleta e eu rumo norte. Carlos deixa-me uma longa carta, desculpando-se pela incapacidade de se despedir pessoalmente. Foram dias digerindo a grandeza daquela magia. Prometi a mim mesmo que se um dia encontrasse um lugar onde assentar e acomodar o corpo (pois a alma, essa nunca se acomoda), construiria um presépio com movimentos como o sonho vivido num povoadinho incrustado nas montanhas no interior da Guatemala. Ao amigo Carlos.
Trabalho majestoso em sua concepção técnica e artística com excepcional atenção minimalista aos detalhes !! Digna de um sonho realizado na inspiração humana de amizade,respeito na dedicação,vontade e na conjunção de fatores que criam momentos mágicos e de inspiração na realização de sonhos !! Não há explicações só realmente viver e aproveitar o máximo esses momentos que em nossos íntimos intuitivamente e inconscientemente sabemos que são únicos e nunca mais irão se repetir a não ser na vivência de nossas memórias !!👏🏻 Sua narrativa daria um belo esboço para criação de roteiro para um filme cult !! 👍🏻
Num sete de dezembro muito distante, em uma de minhas peregrinações ciclísticas pelo continente americano, aportei num pequeno povoado no interior da Guatemala - El Chol. Ruas de terra, uma hospedaria, um orelhão e uma bonita igrejinha na praça central, agora cercada de barraquinhas com produtos e atrações diversas por conta festividades de Nossa Senhora da Conceição que seria no dia seguinte, coincidentemente meu aniversário. Decidi aproveitar o feriado para um dia de descanso aos pedais. Sentei-me às escadarias do cemitério e ali preparei meu almoço enquanto assistia a um campeonato de tiro ao alvo no campo próximo; parte dos eventos que preenchiam a semana de festas.
Carlos, um dos organizadores dos eventos, figura exótica com seus cabelos de Maradona naquele povoado predominantemente mestiço, se acercou e começamos a conversar. Disse que não encontraria hospedagem na cidade, pelas festividades e prontamente ofereceu a casa de “su mamá” para pernoite. Embora inacabada, já seria um porto seguro das intempéries, disse.
A amável recepção me convenceu a descansar uns dias mais. Dia 8 assisti a procissão, seguida pela saída do “Torito”, um boi feito de bambu e papel com centenas de fogos amarrados em sua estrutura e que corria entre a multidão. O operador, sob aquela chama ambulante, vestia duas ou três peças de roupas de algodão e se encharcava, numa técnica quase eficiente de evitar queimaduras. E era nada menos que o próprio Carlos. Para completar o espetáculo pirotécnico, fogos de artifício deslizavam em cabos de aço logo acima de nossas cabeças. Lembrando que minha estatura estava bem acima da média local, para os quais os cabos foram calculados.
Já descansados das festividades do dia anterior, sentamos para jantar tortilhas com feijões “refritos” e conversar sobre a vida. “Coma más, Luizito, estás tan flaquito!” repetia dona Laura, mãe de Carlos de seu fogão de lenha. Ele iria começar a montagem de um grande presépio que quase tomava toda a sala de estar. Acho que uns 3 por 7 metros. Um rio enorme de cera e casinhas antigas que eram heranças de seu avô. Confessou-me o sonho de ter “muñequitos” com movimento, que seu irmão o havia enviado um saquinho de motores do Alabama, mas que não tinha ideia de como usá-los. Respondi prontamente que poderia ajudá-lo, que sabia um pouco e motorzinhos e engrenagens e poderíamos tentar.
Daquele jantar saiu um acordo e, no dia seguinte, Carlos , seus filhos e amigos converteram um quartinho em minha oficina, onde a única ferramenta elétrica era uma furadeira muito antiga. O esmeril era a manivela, na qual garotos disputavam a vaga de força motriz. Os três dias se converteram em um mês. Os mecanismos começaram a funcionar, com a ajuda de ávidas crianças que atendiam aos pedidos mais inusitados, como se fosse uma brincadeira de rua: câmaras de bicicleta, bambus fininhos como um canudinho, elástico de dinheiro “do amarelo”, cera roubada do altar da igreja...
Carlos, artista nato, cuidava das carinhas minúsculas de papel machê, Rosário, sua esposa, dos figurinos delicados para vestir os esqueletinhos de bambu e arame. Um sonho foi tomando forma. O primeiro a surgir foi o homem do poço, com seu misterioso baldinho que sempre se soltava, quase duas da madrugada, nos hipnotizando por longo tempo antes de ganhar uma cabeça e vestimentas. Vieram outros: a moenda de cana movida por uma roda de água, os incansáveis serradores, o pescador sem sorte à beira do lago e até um pássaro batendo asas ao topo de um tronco; que inspiraria um anjo décadas depois.
Os natais de minha infância têm cheiro de panetone recém assado e barulho de avelã estourada na dobradiça da porta. Mas o Natal de El Chol ocupou um lugar especial em minha memória, com olhos brilhantes, sabor de tamales recém cozido e amizade.
Em janeiro, nó na garganta e olhos rasos, seguimos minha bicicleta e eu rumo norte. Carlos deixa-me uma longa carta, desculpando-se pela incapacidade de se despedir pessoalmente. Foram dias digerindo a grandeza daquela magia.
Prometi a mim mesmo que se um dia encontrasse um lugar onde assentar e acomodar o corpo (pois a alma, essa nunca se acomoda), construiria um presépio com movimentos como o sonho vivido num povoadinho incrustado nas montanhas no interior da Guatemala.
Ao amigo Carlos.
Jarbas Noronha
Que vivência tão rica e linda, me emocionou. Belíssimo presépio! Parabéns!!!
Trabalho majestoso em sua concepção técnica e artística com excepcional atenção minimalista aos detalhes !! Digna de um sonho realizado na inspiração humana de amizade,respeito na dedicação,vontade e na conjunção de fatores que criam momentos mágicos e de inspiração na realização de sonhos !!
Não há explicações só realmente viver e aproveitar o máximo esses momentos que em nossos íntimos intuitivamente e inconscientemente sabemos que são únicos e nunca mais irão se repetir a não ser na vivência de nossas memórias !!👏🏻
Sua narrativa daria um belo esboço para criação de roteiro para um filme cult !! 👍🏻
Show!!!! Muito bonitinho o presépio!!!
Parabéns professor!
Maravilhoso presépio encantador.
Belo trabalho
Fantastico Mestre!
Parabéns Jarbas. Encantador o presépio!
Felicidades, muy bonito el movimiento de cada imagen. Me encantó el pescador. Felicitaciones desde Guatemala
State of Art! ❤️
Muito legal. Parabéns.
Que coisa linda !! Sensacional !
Nossa!!! Impressionado. Parabéns!
Que coisa maravilhosa
Belo trabalho! Parabéns aos envolvidos! #esquerdacompradeesquerda
Professor e o mecanismo do poço,o Sr disse que iria gravar.
Grato
Onde podemos visitar este presépio?