O psicólogo clínico Richard Noll publicou em 1996 "O culto de jung - origens de um movimento carismático". Iivro excelente q revela bem quem foi este jung.
Otto Gross e Jung - “Sempre que empaco, ele me analisa, e minha saúde psíquica tem se beneficiado com isso” Jung, em carta a Freud. O ano de 1908 marca um momento decisivo na história da psiquiatria e do movimento psicanalítico. É também o ano em que temos evidências de que o submundo neopagão e boêmio de Ascona invadira o santuário cristão-burguês da alma de Jung. Nesse ano, Bleuler publicou uma monografia em que se usava pela primeira vez o termo esquizofrenia [Eugen Bleuler, “Die Prognose der Dementia Praecox - Schizophrenienguppe”, em Allgemeine Zeitscrift fur Psychiatrie, 65: 436-64 (1908)]. Bleuler o cunhara como alternativa à demência precoce, introduzido por Kraepelin em 1893 para indicar um grupo de desordens psicóticas que eram todas progressivamente degenerativas e pareciam levar à morte. (...). Em 16 de janeiro de 1908, Jung apresentou na prefeitura de Zurique uma monografia sobre “O conteúdo das psicoses”; em 26 e 27 de abril, repetiu essencialmente as mesmas ideias no Primeiro Congresso Psicanalítico, em Salzburgo, na Áustria [C. G. Jung, “The content of the psychoses” (1908), em The psychogenesis of mental disease (CW 3; Princeton, Princeton University Press, s. d.; ed. anterior. New York, Pantheon, 1960]. (...). (...). Em 1908, o movimento psicanalítico era um clube exclusivamente para médicos, e Freud o queria assim. “Somos médicos e queremos continuar médicos”, disse a Otto Gross no congresso de Salzburgo, depois que Gross falara das “perspectivas culturais da ciência” [Wolfgang Schwentker, “Passion as a mode of life: Max Weber, the Otto Gross Circle and eroticism”, em Mommsen & Osterhammel, Max Weber and his contemporaries, p. 488]. Mas, apesar das vontades de Freud, logo depois obras psicanalíticas começaram a examinar a cultura europeia como um todo (literatura, contos de fadas, mitos, ópera wagneriana etc.). por causa disso, a psicanalise passou a atrair a atenção de luminares da arte e do mundo acadêmico. O ano de 1908 também foi importante por ter assistido ao encontro decisivo entre Jung e o nietzscheano Otto Gross (1877-1920), médico, psicanalista e depois anarquista. [Gross] também estava metido em encrencas. Era viciado em morfina e cocaína e, afora a internação de 1908 sob os cuidados de Jung, precisou ser hospitalizado diversas outras vezes no Burgholzli e em outros lugares, começando já em 1902. Era o profeta mais radical da nova ética do erotismo e teve uma enorme influência em muitas pessoas famosas da época. Chegou a aparecer como personagem em vários romances escritos por gente que o conheceu [J. E. Michaels, “Anarchy and Eros: Otto Gross’s impact on German Expressionist writers”, Utah Studies in Literature and Linguistics, 24 (New York, Peter Lang, 1983]. Gross constituía um acréscimo valioso ao movimento psicanalítico, (...). Mas, também nesse período [1906], Gross afundou ainda mais no morfinismo crônico e, usando Nietzsche como base teórica, interessou-se por métodos práticos para transformar a sociedade germânica. Gross usava a psicanálise como a tecnologia prática do nietzschianismo, mas a levava a extremos que não eram defendidos nem por Freud, nem por Jung, nem por outros psicanalistas. (...). Não há melhor descrição dos contornos do mundo boêmio em que Gross viveu, amou e morreu. (...). Gross talvez seja mais afamado por seu envolvimento com pessoas que se tornariam importantes figuras literárias, ou com pessoas que mais tarde levariam a essas figuras literárias o evangelho nietzschiano de Gross. (...). ..., Gross foi logo identificado como o carismático, mas perigoso, profeta nietzschiano da imoralidade. (...). Uma das pessoas que, através do contato direto com Gross, passaram pela tremenda experiência de conversão a esse nietzschianismo sexual foi ninguém menos do que o próprio Jung. Por sugestão de Freud, logo depois do congresso de Salzburgo, Jung deu início a um intenso tratamento psicanalítico para salvar Gross do vício. Em maio de 1908, Gross foi admitido como paciente no Burgholzli, ... (...). Ele [Jung] e Gross ficaram juntos em exaustivas sessões de doze horas ou mais, e Jung disse a Freud: “Sempre que empaco, ele me analisa, e minha saúde psíquica tem se beneficiado com isso” [McGuirre, Freud/Jung letters, p. 90 (letter 46 J]. No final do processo, depois de Gross ter subitamente escapado (pulando o muro do jardim para procurar sua fonte de drogas), Jung estava decepcionado, mas ainda assim podia dizer: “Apesar de tudo, continuo amigo dele, pois no fundo é um homem muito bom, com uma mente extraordinária [...] descobri em Gross muitos aspectos de minha verdadeira natureza, tanto que diversas vezes ele parecia ser meu irmão gêmeo - a não ser pela demência precoce” [ibidem, p. 156 (letter 98 J). Ver também a carta de Jung a Freud de 9 de setembro de 1908 (letter 108 J), em que ele dizia estar ansioso para voltar a falar com Gross, durante o processo de psicanálise mútua: “Nesse aspecto, Gross, não importa quão difícil de digerir, me fez um bem enorme. Apesar da rabujice, a conversa dele é maravilhosamente estimulante. Tenho sentido uma falta tremenda dessas conversas” (p. 171)]. O que foi que Jung descobriu a respeito de si mesmo em Gross? (NOLL, 1996. P. 166-69; p. 172-174- e pp. 378-80)
(...). Quem está familiarizado com a história do círculo de amigos de Freud sabe que, dentre os seguidores que expressaram pensamento independente, mais de um não acabou bem. Victor Tausk e mais tarde Herbert Silberer - cujos escritos sobre alquimia e psicologia antecederam por décadas os de Jung - cometeram suicídio ao serem excomungados por Freud por terem manifestado reservas sobre as teorias do mestre. Wilhelm Reich teve um esgotamento nervoso depois de ser rejeitado por Freud e também Jung atravessaria uma crise assim que o cordão umbilical psicanalítico fosse cortado. [Quando Freud se recusou a proporcionar a Reich sua “análise de treinamento” - um rito iniciatório para a prática da psicanálise, uma ideia que Jung foi o primeiro a propor - Reich teve um colapso nervoso que requereu hospitalização. Ver Colin Wilson, The Quest for Wilhelm Reich (Nova York: Anchor Pres, 1981), pp. 90-5; para Tausk, pp. 67-8; para Silberer, pp. 72-3] - Jung, o místico: a dimensões esotéricas da vida e dos ensinamentos de C. G. Jung: uma nova biografia. - Gary Lachman. SP. Cultrix, 2012, p. 91 e p. 255
Em 1928, Jung introduziu a noção de “personalidade mana” para descrever o que, essencialmente, era o mesmo conceito. Entretanto, as forças sobrenaturais por trás da personalidade são, naturalmente, os arquétipos do inconsciente coletivo. (...). (Noll, 1996, p. 20) Sobre a “personalidade mana”, Noll: Trata-se de uma ampla revisão do fecundo ensaio de 1916 cuja terceira versão (ainda maior) foi publicada como “The relations between the ego and the unconscious” (1928), em “Two essays on analytical psychology” (CW 7; Princeton, Princeton University Press, 1966). Entretanto, já em 1917 Jung introduzira o protótipo desse conceito, com a ideia de que a imagem de um “demônio magico” é às vezes projetada no médico pelo paciente. “A imagem desse demônio é o mais elementar conceito de Deus. É o dominante do feiticeiro tribal primitivo, ou de uma personalidade particularmente dotada de poderes mágicos”. (Jung, The psychology of unconscious process, em Collected papers on analytical psychology, 2. ed., ed. and trans. Constance Long; London, Baillière, Tindall & Cox, 1920). (Noll, 1996, p. 333). A principal obra de Max Weber (1864-1920) sobre a sociologia da religião, em que se discute a natureza do líder carismático, já estava bastante acessível desde 1922, e é de admirar que Jung não desse a Weber o crédito por esse conceito, ainda que talvez tenha posteriormente baseado seu conceito de “personalidade mana” no “líder carismático” de Weber. Não há registro de um contato direto entre Weber e Jung, embora Jung possa ter conhecido Marianne Weber, mulher de Marx, quando participou como orador convidado da organização cristã alemã Die Kongener, na década de 30. (...). (Noll, 1996, p. 20 e p. 333) “Mana” é um termo melanésio que Jung adotou em vários pontos de sua obra para indicar o poder pessoal excepcional ou o poder sobrenatural emanado de espíritos ou objetos sagrados. - Jung, o místico: a dimensões esotéricas da vida e dos ensinamentos de C. G. Jung: uma nova biografia. - Gary Lachman. SP. Cultrix, 2012, p. 255
(...). O congresso, contudo, foi um sucesso e um dos oradores era um personagem excêntrico que teria sobre Jung a influência tão grande quanto a melancólica Sabina. Otto Gross era filho do juiz e criminologista Hans Gross, cujas palestras foram assistidas pelo escritor Franz Kafka; as ideias de Hans Gross sobre “tipos criminosos” degenerados - aqueles que ainda não tinham cometido um crime, mas estavam prontos a cometê-lo, um tema atualizado em “The Minority Report” [A Nova Lei], de Philip K. Dick - podem ser percebidas no perturbador romance de Kafka O Processo, sobre um homem que é preso mas nunca descobre por quê (Hans Gross também teve um vínculo com Jung, quando Jung acusou dois de seus alunos de tentarem ficar com crédito pela utilização do teste de associação de palavras para determinar a culpa). Otto Gross ficou desgostoso com as opiniões autoritárias do pai e se lançou em defesa de uma série de ideias “libertárias”, de forma mais contundente, o “amor livre”; foi pai de vários filhos ilegítimos e usuário de morfina e cocaína. Estava também gravemente perturbado: recusava-se a tomar banho, usava diversas camadas de roupa mesmo no tempo mais quente, falava rápido, numa torrente de ideias grandiosas, encorajava o uso de narcóticos por outras pessoas e chegaram inclusive a dizer que forneceu veneno a uma mulher suicida. Gross era frequentador habitual da decadente café society boêmia do distrito de Schwabing, em Munique - uma espécie de Haigh-Ashbury [bairro de San Francisco. Foi o berço do movimento hippie nos anos 1960, nos Estados Unidos. (N. T.)] no início do século XX - e adotou as ideias sociais radicais que estavam em voga no Monte Verità, a “Montanha da Verdade”, uma comunidade alternativa pioneira estabelecida em Ascona, na Suíça, em 1900 onde, como sustentou o historiador Martin Green, “a contracultura nasceu” [Martin Green, Mountain of Truth: The Counterculture Begins, Ascona 1900-1920 (Hanover e Londres: University Press of New England, 1986); ver também minha A História Secreta da Política Ocidental: A Direita, a Esquerda e a Influência da Maçonaria e de Outras Sociedades nos destinos da Humanidade, publicado pela Editora Cultrix, São Paulo, 2010] Pessoas notáveis como Hermann Hesse, Rudolf Steiner, Isadora Duncan e muitos outros fizeram a trilha de Monte Verità para experimentar a cura natural, praticar o nudismo (menos Steiner), meditar, cultivar suas próprias verduras, desfrutar o “amor livre” ... Gross foi inicialmente atraído para a psicanálise... Na conferência Gross sustentou que as ideias de Freud poderiam ser usadas como base para uma revolução cultural, afirmando que uma sociedade sexualmente liberada estaria livre da neurose, antecipando sob muitos aspectos a mistura freudiana-marxista tornada popular nos anos 1960 por Herbert Marcuse. Como fez R. D. Laing, Gross sustentou que a doença era uma resposta apropriada a uma sociedade repressiva e não tentou esconder suas próprias excentricidades na conferência. (...). Foi como médico, contudo, que Jung conheceu Gross, quando Freud mandou o jovem rebelde para o Burgholzli, depois do pai dele lhe pedir que curasse Gross de seus vícios. Jung ficou a princípio desconsertado com as ideias de Gross sobre a liberação sexual, acreditando que a repressão sexual era necessária à civilização. O carisma de Gross, porém, logo superou a antipatia de Jung e o próprio suíço acabou achando que o anárquico Gross era como um irmão gêmeo. Passava horas com ele, tirando o tempo de outros pacientes e os dois começaram a analisar um ao outro. Certa vez, como aconteceu em sua primeira conversa com Freud, Jung conversou com Gross por doze horas seguidas. Gross introduziu Jung nas ideias que absorvera nos cafés de Schwabing [para Gross, Schwabing e Monte Verità ver O Culto de Jung, de Richard Noll (Londres: Fontana Press, 1996); para Schwabing ver David Clay Large, Where Ghost Walked: Munich’s Road to the Third Reich (Nova York: W. W. Norton, 1997), pp. 3-42] e entre os adoradores do Sol no Monte Verità, entre elas o paganismo e a noção de uma antiga sociedade matriarcal, que fora defendida por Johann Bachofen, um baliseano como Jung. Apesar de um tanto puritano, Jung se viu questionando toda a sua atitude com relação à vida, à sociedade, ao casamento e à família; Gross, por sua vez, diminuiu o consumo de drogas e tentou viver sua vida com um pouco mais de estabilidade. Jung sentiu que a análise fora bem sucedida e que Gross estava melhorando, mas logo percebeu que Gross era um exemplo do que chamaria mais tarde de puer [De puer aeternus, eterna criança. (N. T.)], uma espécie de eterno jovem, uma personalidade Peter Pan, incapaz de aceitar as responsabilidades de ser adulto. Gross provou que ele estava certo quando, incapaz de resistir à ânsia por drogas, escalou um muro e fugiu do asilo psiquiátrico. Jung jamais tornou a vê-lo. Depois de ter sido internado à força pelo pai, durante algum tempo, em outra situação psiquiátrica, Gross morreu sozinho e sem teto num subúrbio de Berlim, em 1920. Jung ficou esmagado pelo que via como uma tradição de Gross. Essa foi sua primeira derrota. Contudo, Gross indiscutivelmente mudou Jung. Em primeiro lugar, foi após o encontro dos dois que Jung abandonou seus escrúpulos e, ao que tudo indica, tornou-se amante de Sabina. Suas tendências polígamas tinham irrompido, incitadas pelas pulsões de Gross, e o respeitável Jung se viu como um defensor da rebelião; ... Sob muitos aspectos, a determinação de Jung em “tornar-se quem ele era” e em ajudar outros a fazer o mesmo pode ser relacionada ao breve, mas intenso, contato com Otto Gross. [Em Memórias, sonhos, reflexões pp. 165-66, Jung escreve que “no exercício de sua profissão, um médico vai se deparar com pessoas que também terão um grande efeito sobre ele. Encontrará personalidades... cujo destino é enfrentar situações e desastres sem precedentes. Às vezes são pessoas de extraordinários talentos, que poderiam perfeitamente inspirar outros a darem a vida por elas, mas esses talentos podem estar implantados numa disposição psíquica tão estranhamente desfavorável que não conseguimos dizer se é uma questão de gênio ou de desenvolvimento fragmentário. Frequentemente, também, nesse solo improvável, brota da psique uma flor rara que jamais imaginaríamos encontrar pelas planícies áridas da sociedade”. Isso me parece uma referência a Gross e possivelmente também à Sabina Spielrein, nenhum dos quais é mencionado no livro.] - Jung, o místico: a dimensões esotéricas da vida e dos ensinamentos de C. G. Jung: uma nova biografia. - Gary Lachman. Cultrix, 2012, p. 84-87 e p. 253-54)
Na sua autobiografia, Jung volta ao assunto para dizer que o incesto tem um aspecto psicológico e mesmo religioso altamente significativo. O incesto al qual uma das suas pacientes foi submetida aos 15 anos pelo irmão teria feito com que, por um lado, ela se sentisse humilhada aos olhos do mundo, perdesse o contato com o mundo e entrasse num estado de psicose, e que, por outro lado, ela fosse “elevada para o reino da fantasia”, “transportada para um reino mítico, pois, tradicionalmente, o incesto é uma prerrogativa da realeza e das divindades”. Ela “mergulhou nas distâncias cósmicas, no espaço externo, onde se encontrou com o demônio alado” (C. G. Jung. Memórias, sonhos, reflexões. RJ, Nova Fronteira, 2006, p. 165. Apud Loparic 2007, p. 86)
Valeu demais!
muitoo bom
Obrigada Doutor, adoro suas aulas.
Sensacional a forma como você explica o meu primeiro amor Jung.
Grata professor.
As contribuições deles pra psicologia da personalidade quais foram
O psicólogo clínico Richard Noll publicou em 1996 "O culto de jung - origens de um movimento carismático". Iivro excelente q revela bem quem foi este jung.
Otto Gross e Jung - “Sempre que empaco, ele me analisa, e minha saúde psíquica tem se beneficiado com isso” Jung, em carta a Freud.
O ano de 1908 marca um momento decisivo na história da psiquiatria e do movimento psicanalítico. É também o ano em que temos evidências de que o submundo neopagão e boêmio de Ascona invadira o santuário cristão-burguês da alma de Jung. Nesse ano, Bleuler publicou uma monografia em que se usava pela primeira vez o termo esquizofrenia [Eugen Bleuler, “Die Prognose der Dementia Praecox - Schizophrenienguppe”, em Allgemeine Zeitscrift fur Psychiatrie, 65: 436-64 (1908)]. Bleuler o cunhara como alternativa à demência precoce, introduzido por Kraepelin em 1893 para indicar um grupo de desordens psicóticas que eram todas progressivamente degenerativas e pareciam levar à morte. (...).
Em 16 de janeiro de 1908, Jung apresentou na prefeitura de Zurique uma monografia sobre “O conteúdo das psicoses”; em 26 e 27 de abril, repetiu essencialmente as mesmas ideias no Primeiro Congresso Psicanalítico, em Salzburgo, na Áustria [C. G. Jung, “The content of the psychoses” (1908), em The psychogenesis of mental disease (CW 3; Princeton, Princeton University Press, s. d.; ed. anterior. New York, Pantheon, 1960]. (...).
(...). Em 1908, o movimento psicanalítico era um clube exclusivamente para médicos, e Freud o queria assim. “Somos médicos e queremos continuar médicos”, disse a Otto Gross no congresso de Salzburgo, depois que Gross falara das “perspectivas culturais da ciência” [Wolfgang Schwentker, “Passion as a mode of life: Max Weber, the Otto Gross Circle and eroticism”, em Mommsen & Osterhammel, Max Weber and his contemporaries, p. 488]. Mas, apesar das vontades de Freud, logo depois obras psicanalíticas começaram a examinar a cultura europeia como um todo (literatura, contos de fadas, mitos, ópera wagneriana etc.). por causa disso, a psicanalise passou a atrair a atenção de luminares da arte e do mundo acadêmico.
O ano de 1908 também foi importante por ter assistido ao encontro decisivo entre Jung e o nietzscheano Otto Gross (1877-1920), médico, psicanalista e depois anarquista. [Gross] também estava metido em encrencas. Era viciado em morfina e cocaína e, afora a internação de 1908 sob os cuidados de Jung, precisou ser hospitalizado diversas outras vezes no Burgholzli e em outros lugares, começando já em 1902. Era o profeta mais radical da nova ética do erotismo e teve uma enorme influência em muitas pessoas famosas da época. Chegou a aparecer como personagem em vários romances escritos por gente que o conheceu [J. E. Michaels, “Anarchy and Eros: Otto Gross’s impact on German Expressionist writers”, Utah Studies in Literature and Linguistics, 24 (New York, Peter Lang, 1983]. Gross constituía um acréscimo valioso ao movimento psicanalítico, (...). Mas, também nesse período [1906], Gross afundou ainda mais no morfinismo crônico e, usando Nietzsche como base teórica, interessou-se por métodos práticos para transformar a sociedade germânica. Gross usava a psicanálise como a tecnologia prática do nietzschianismo, mas a levava a extremos que não eram defendidos nem por Freud, nem por Jung, nem por outros psicanalistas. (...). Não há melhor descrição dos contornos do mundo boêmio em que Gross viveu, amou e morreu. (...). Gross talvez seja mais afamado por seu envolvimento com pessoas que se tornariam importantes figuras literárias, ou com pessoas que mais tarde levariam a essas figuras literárias o evangelho nietzschiano de Gross. (...). ..., Gross foi logo identificado como o carismático, mas perigoso, profeta nietzschiano da imoralidade. (...). Uma das pessoas que, através do contato direto com Gross, passaram pela tremenda experiência de conversão a esse nietzschianismo sexual foi ninguém menos do que o próprio Jung.
Por sugestão de Freud, logo depois do congresso de Salzburgo, Jung deu início a um intenso tratamento psicanalítico para salvar Gross do vício. Em maio de 1908, Gross foi admitido como paciente no Burgholzli, ... (...). Ele [Jung] e Gross ficaram juntos em exaustivas sessões de doze horas ou mais, e Jung disse a Freud: “Sempre que empaco, ele me analisa, e minha saúde psíquica tem se beneficiado com isso” [McGuirre, Freud/Jung letters, p. 90 (letter 46 J].
No final do processo, depois de Gross ter subitamente escapado (pulando o muro do jardim para procurar sua fonte de drogas), Jung estava decepcionado, mas ainda assim podia dizer: “Apesar de tudo, continuo amigo dele, pois no fundo é um homem muito bom, com uma mente extraordinária [...] descobri em Gross muitos aspectos de minha verdadeira natureza, tanto que diversas vezes ele parecia ser meu irmão gêmeo - a não ser pela demência precoce” [ibidem, p. 156 (letter 98 J). Ver também a carta de Jung a Freud de 9 de setembro de 1908 (letter 108 J), em que ele dizia estar ansioso para voltar a falar com Gross, durante o processo de psicanálise mútua: “Nesse aspecto, Gross, não importa quão difícil de digerir, me fez um bem enorme. Apesar da rabujice, a conversa dele é maravilhosamente estimulante. Tenho sentido uma falta tremenda dessas conversas” (p. 171)].
O que foi que Jung descobriu a respeito de si mesmo em Gross? (NOLL, 1996. P. 166-69; p. 172-174- e pp. 378-80)
(...). Quem está familiarizado com a história do círculo de amigos de Freud sabe que, dentre os seguidores que expressaram pensamento independente, mais de um não acabou bem. Victor Tausk e mais tarde Herbert Silberer - cujos escritos sobre alquimia e psicologia antecederam por décadas os de Jung - cometeram suicídio ao serem excomungados por Freud por terem manifestado reservas sobre as teorias do mestre. Wilhelm Reich teve um esgotamento nervoso depois de ser rejeitado por Freud e também Jung atravessaria uma crise assim que o cordão umbilical psicanalítico fosse cortado. [Quando Freud se recusou a proporcionar a Reich sua “análise de treinamento” - um rito iniciatório para a prática da psicanálise, uma ideia que Jung foi o primeiro a propor - Reich teve um colapso nervoso que requereu hospitalização. Ver Colin Wilson, The Quest for Wilhelm Reich (Nova York: Anchor Pres, 1981), pp. 90-5; para Tausk, pp. 67-8; para Silberer, pp. 72-3] - Jung, o místico: a dimensões esotéricas da vida e dos ensinamentos de C. G. Jung: uma nova biografia. - Gary Lachman. SP. Cultrix, 2012, p. 91 e p. 255
Em 1928, Jung introduziu a noção de “personalidade mana” para descrever o que, essencialmente, era o mesmo conceito. Entretanto, as forças sobrenaturais por trás da personalidade são, naturalmente, os arquétipos do inconsciente coletivo. (...). (Noll, 1996, p. 20)
Sobre a “personalidade mana”, Noll: Trata-se de uma ampla revisão do fecundo ensaio de 1916 cuja terceira versão (ainda maior) foi publicada como “The relations between the ego and the unconscious” (1928), em “Two essays on analytical psychology” (CW 7; Princeton, Princeton University Press, 1966). Entretanto, já em 1917 Jung introduzira o protótipo desse conceito, com a ideia de que a imagem de um “demônio magico” é às vezes projetada no médico pelo paciente. “A imagem desse demônio é o mais elementar conceito de Deus. É o dominante do feiticeiro tribal primitivo, ou de uma personalidade particularmente dotada de poderes mágicos”. (Jung, The psychology of unconscious process, em Collected papers on analytical psychology, 2. ed., ed. and trans. Constance Long; London, Baillière, Tindall & Cox, 1920). (Noll, 1996, p. 333).
A principal obra de Max Weber (1864-1920) sobre a sociologia da religião, em que se discute a natureza do líder carismático, já estava bastante acessível desde 1922, e é de admirar que Jung não desse a Weber o crédito por esse conceito, ainda que talvez tenha posteriormente baseado seu conceito de “personalidade mana” no “líder carismático” de Weber. Não há registro de um contato direto entre Weber e Jung, embora Jung possa ter conhecido Marianne Weber, mulher de Marx, quando participou como orador convidado da organização cristã alemã Die Kongener, na década de 30. (...). (Noll, 1996, p. 20 e p. 333)
“Mana” é um termo melanésio que Jung adotou em vários pontos de sua obra para indicar o poder pessoal excepcional ou o poder sobrenatural emanado de espíritos ou objetos sagrados. - Jung, o místico: a dimensões esotéricas da vida e dos ensinamentos de C. G. Jung: uma nova biografia. - Gary Lachman. SP. Cultrix, 2012, p. 255
(...). O congresso, contudo, foi um sucesso e um dos oradores era um personagem excêntrico que teria sobre Jung a influência tão grande quanto a melancólica Sabina. Otto Gross era filho do juiz e criminologista Hans Gross, cujas palestras foram assistidas pelo escritor Franz Kafka; as ideias de Hans Gross sobre “tipos criminosos” degenerados - aqueles que ainda não tinham cometido um crime, mas estavam prontos a cometê-lo, um tema atualizado em “The Minority Report” [A Nova Lei], de Philip K. Dick - podem ser percebidas no perturbador romance de Kafka O Processo, sobre um homem que é preso mas nunca descobre por quê (Hans Gross também teve um vínculo com Jung, quando Jung acusou dois de seus alunos de tentarem ficar com crédito pela utilização do teste de associação de palavras para determinar a culpa). Otto Gross ficou desgostoso com as opiniões autoritárias do pai e se lançou em defesa de uma série de ideias “libertárias”, de forma mais contundente, o “amor livre”; foi pai de vários filhos ilegítimos e usuário de morfina e cocaína. Estava também gravemente perturbado: recusava-se a tomar banho, usava diversas camadas de roupa mesmo no tempo mais quente, falava rápido, numa torrente de ideias grandiosas, encorajava o uso de narcóticos por outras pessoas e chegaram inclusive a dizer que forneceu veneno a uma mulher suicida.
Gross era frequentador habitual da decadente café society boêmia do distrito de Schwabing, em Munique - uma espécie de Haigh-Ashbury [bairro de San Francisco. Foi o berço do movimento hippie nos anos 1960, nos Estados Unidos. (N. T.)] no início do século XX - e adotou as ideias sociais radicais que estavam em voga no Monte Verità, a “Montanha da Verdade”, uma comunidade alternativa pioneira estabelecida em Ascona, na Suíça, em 1900 onde, como sustentou o historiador Martin Green, “a contracultura nasceu” [Martin Green, Mountain of Truth: The Counterculture Begins, Ascona 1900-1920 (Hanover e Londres: University Press of New England, 1986); ver também minha A História Secreta da Política Ocidental: A Direita, a Esquerda e a Influência da Maçonaria e de Outras Sociedades nos destinos da Humanidade, publicado pela Editora Cultrix, São Paulo, 2010]
Pessoas notáveis como Hermann Hesse, Rudolf Steiner, Isadora Duncan e muitos outros fizeram a trilha de Monte Verità para experimentar a cura natural, praticar o nudismo (menos Steiner), meditar, cultivar suas próprias verduras, desfrutar o “amor livre” ... Gross foi inicialmente atraído para a psicanálise... Na conferência Gross sustentou que as ideias de Freud poderiam ser usadas como base para uma revolução cultural, afirmando que uma sociedade sexualmente liberada estaria livre da neurose, antecipando sob muitos aspectos a mistura freudiana-marxista tornada popular nos anos 1960 por Herbert Marcuse. Como fez R. D. Laing, Gross sustentou que a doença era uma resposta apropriada a uma sociedade repressiva e não tentou esconder suas próprias excentricidades na conferência. (...).
Foi como médico, contudo, que Jung conheceu Gross, quando Freud mandou o jovem rebelde para o Burgholzli, depois do pai dele lhe pedir que curasse Gross de seus vícios. Jung ficou a princípio desconsertado com as ideias de Gross sobre a liberação sexual, acreditando que a repressão sexual era necessária à civilização. O carisma de Gross, porém, logo superou a antipatia de Jung e o próprio suíço acabou achando que o anárquico Gross era como um irmão gêmeo. Passava horas com ele, tirando o tempo de outros pacientes e os dois começaram a analisar um ao outro. Certa vez, como aconteceu em sua primeira conversa com Freud, Jung conversou com Gross por doze horas seguidas. Gross introduziu Jung nas ideias que absorvera nos cafés de Schwabing [para Gross, Schwabing e Monte Verità ver O Culto de Jung, de Richard Noll (Londres: Fontana Press, 1996); para Schwabing ver David Clay Large, Where Ghost Walked: Munich’s Road to the Third Reich (Nova York: W. W. Norton, 1997), pp. 3-42] e entre os adoradores do Sol no Monte Verità, entre elas o paganismo e a noção de uma antiga sociedade matriarcal, que fora defendida por Johann Bachofen, um baliseano como Jung. Apesar de um tanto puritano, Jung se viu questionando toda a sua atitude com relação à vida, à sociedade, ao casamento e à família; Gross, por sua vez, diminuiu o consumo de drogas e tentou viver sua vida com um pouco mais de estabilidade.
Jung sentiu que a análise fora bem sucedida e que Gross estava melhorando, mas logo percebeu que Gross era um exemplo do que chamaria mais tarde de puer [De puer aeternus, eterna criança. (N. T.)], uma espécie de eterno jovem, uma personalidade Peter Pan, incapaz de aceitar as responsabilidades de ser adulto. Gross provou que ele estava certo quando, incapaz de resistir à ânsia por drogas, escalou um muro e fugiu do asilo psiquiátrico. Jung jamais tornou a vê-lo. Depois de ter sido internado à força pelo pai, durante algum tempo, em outra situação psiquiátrica, Gross morreu sozinho e sem teto num subúrbio de Berlim, em 1920. Jung ficou esmagado pelo que via como uma tradição de Gross. Essa foi sua primeira derrota. Contudo, Gross indiscutivelmente mudou Jung. Em primeiro lugar, foi após o encontro dos dois que Jung abandonou seus escrúpulos e, ao que tudo indica, tornou-se amante de Sabina. Suas tendências polígamas tinham irrompido, incitadas pelas pulsões de Gross, e o respeitável Jung se viu como um defensor da rebelião; ... Sob muitos aspectos, a determinação de Jung em “tornar-se quem ele era” e em ajudar outros a fazer o mesmo pode ser relacionada ao breve, mas intenso, contato com Otto Gross. [Em Memórias, sonhos, reflexões pp. 165-66, Jung escreve que “no exercício de sua profissão, um médico vai se deparar com pessoas que também terão um grande efeito sobre ele. Encontrará personalidades... cujo destino é enfrentar situações e desastres sem precedentes. Às vezes são pessoas de extraordinários talentos, que poderiam perfeitamente inspirar outros a darem a vida por elas, mas esses talentos podem estar implantados numa disposição psíquica tão estranhamente desfavorável que não conseguimos dizer se é uma questão de gênio ou de desenvolvimento fragmentário. Frequentemente, também, nesse solo improvável, brota da psique uma flor rara que jamais imaginaríamos encontrar pelas planícies áridas da sociedade”. Isso me parece uma referência a Gross e possivelmente também à Sabina Spielrein, nenhum dos quais é mencionado no livro.] - Jung, o místico: a dimensões esotéricas da vida e dos ensinamentos de C. G. Jung: uma nova biografia. - Gary Lachman. Cultrix, 2012, p. 84-87 e p. 253-54)
Na sua autobiografia, Jung volta ao assunto para dizer que o incesto tem um aspecto psicológico e mesmo religioso altamente significativo. O incesto al qual uma das suas pacientes foi submetida aos 15 anos pelo irmão teria feito com que, por um lado, ela se sentisse humilhada aos olhos do mundo, perdesse o contato com o mundo e entrasse num estado de psicose, e que, por outro lado, ela fosse “elevada para o reino da fantasia”, “transportada para um reino mítico, pois, tradicionalmente, o incesto é uma prerrogativa da realeza e das divindades”. Ela “mergulhou nas distâncias cósmicas, no espaço externo, onde se encontrou com o demônio alado” (C. G. Jung. Memórias, sonhos, reflexões. RJ, Nova Fronteira, 2006, p. 165. Apud Loparic 2007, p. 86)
Obrigado Professor.