(...). O congresso, contudo, foi um sucesso e um dos oradores era um personagem excêntrico que teria sobre Jung a influência tão grande quanto a melancólica Sabina. Otto Gross era filho do juiz e criminologista Hans Gross, cujas palestras foram assistidas pelo escritor Franz Kafka; as ideias de Hans Gross sobre “tipos criminosos” degenerados - aqueles que ainda não tinham cometido um crime, mas estavam prontos a cometê-lo, um tema atualizado em “The Minority Report” [A Nova Lei], de Philip K. Dick - podem ser percebidas no perturbador romance de Kafka O Processo, sobre um homem que é preso mas nunca descobre por quê (Hans Gross também teve um vínculo com Jung, quando Jung acusou dois de seus alunos de tentarem ficar com crédito pela utilização do teste de associação de palavras para determinar a culpa). Otto Gross ficou desgostoso com as opiniões autoritárias do pai e se lançou em defesa de uma série de ideias “libertárias”, de forma mais contundente, o “amor livre”; foi pai de vários filhos ilegítimos e usuário de morfina e cocaína. Estava também gravemente perturbado: recusava-se a tomar banho, usava diversas camadas de roupa mesmo no tempo mais quente, falava rápido, numa torrente de ideias grandiosas, encorajava o uso de narcóticos por outras pessoas e chegaram inclusive a dizer que forneceu veneno a uma mulher suicida. Gross era frequentador habitual da decadente café society boêmia do distrito de Schwabing, em Munique - uma espécie de Haigh-Ashbury [bairro de San Francisco. Foi o berço do movimento hippie nos anos 1960, nos Estados Unidos. (N. T.)] no início do século XX - e adotou as ideias sociais radicais que estavam em voga no Monte Verità, a “Montanha da Verdade”, uma comunidade alternativa pioneira estabelecida em Ascona, na Suíça, em 1900 onde, como sustentou o historiador Martin Green, “a contracultura nasceu” [Martin Green, Mountain of Truth: The Counterculture Begins, Ascona 1900-1920 (Hanover e Londres: University Press of New England, 1986); ver também minha A História Secreta da Política Ocidental: A Direita, a Esquerda e a Influência da Maçonaria e de Outras Sociedades nos destinos da Humanidade, publicado pela Editora Cultrix, São Paulo, 2010] Pessoas notáveis como Hermann Hesse, Rudolf Steiner, Isadora Duncan e muitos outros fizeram a trilha de Monte Verità para experimentar a cura natural, praticar o nudismo (menos Steiner), meditar, cultivar suas próprias verduras, desfrutar o “amor livre” ... Gross foi inicialmente atraído para a psicanálise... Na conferência Gross sustentou que as ideias de Freud poderiam ser usadas como base para uma revolução cultural, afirmando que uma sociedade sexualmente liberada estaria livre da neurose, antecipando sob muitos aspectos a mistura freudiana-marxista tornada popular nos anos 1960 por Herbert Marcuse. Como fez R. D. Laing, Gross sustentou que a doença era uma resposta apropriada a uma sociedade repressiva e não tentou esconder suas próprias excentricidades na conferência. (...). Foi como médico, contudo, que Jung conheceu Gross, quando Freud mandou o jovem rebelde para o Burgholzli, depois do pai dele lhe pedir que curasse Gross de seus vícios. Jung ficou a princípio desconsertado com as ideias de Gross sobre a liberação sexual, acreditando que a repressão sexual era necessária à civilização. O carisma de Gross, porém, logo superou a antipatia de Jung e o próprio suíço acabou achando que o anárquico Gross era como um irmão gêmeo. Passava horas com ele, tirando o tempo de outros pacientes e os dois começaram a analisar um ao outro. Certa vez, como aconteceu em sua primeira conversa com Freud, Jung conversou com Gross por doze horas seguidas. Gross introduziu Jung nas ideias que absorvera nos cafés de Schwabing [para Gross, Schwabing e Monte Verità ver O Culto de Jung, de Richard Noll (Londres: Fontana Press, 1996); para Schwabing ver David Clay Large, Where Ghost Walked: Munich’s Road to the Third Reich (Nova York: W. W. Norton, 1997), pp. 3-42] e entre os adoradores do Sol no Monte Verità, entre elas o paganismo e a noção de uma antiga sociedade matriarcal, que fora defendida por Johann Bachofen, um baliseano como Jung. Apesar de um tanto puritano, Jung se viu questionando toda a sua atitude com relação à vida, à sociedade, ao casamento e à família; Gross, por sua vez, diminuiu o consumo de drogas e tentou viver sua vida com um pouco mais de estabilidade. Jung sentiu que a análise fora bem sucedida e que Gross estava melhorando, mas logo percebeu que Gross era um exemplo do que chamaria mais tarde de puer [De puer aeternus, eterna criança. (N. T.)], uma espécie de eterno jovem, uma personalidade Peter Pan, incapaz de aceitar as responsabilidades de ser adulto. Gross provou que ele estava certo quando, incapaz de resistir à ânsia por drogas, escalou um muro e fugiu do asilo psiquiátrico. Jung jamais tornou a vê-lo. Depois de ter sido internado à força pelo pai, durante algum tempo, em outra situação psiquiátrica, Gross morreu sozinho e sem teto num subúrbio de Berlim, em 1920. Jung ficou esmagado pelo que via como uma tradição de Gross. Essa foi sua primeira derrota. Contudo, Gross indiscutivelmente mudou Jung. Em primeiro lugar, foi após o encontro dos dois que Jung abandonou seus escrúpulos e, ao que tudo indica, tornou-se amante de Sabina. Suas tendências polígamas tinham irrompido, incitadas pelas pulsões de Gross, e o respeitável Jung se viu como um defensor da rebelião; ... Sob muitos aspectos, a determinação de Jung em “tornar-se quem ele era” e em ajudar outros a fazer o mesmo pode ser relacionada ao breve, mas intenso, contato com Otto Gross. [Em Memórias, sonhos, reflexões pp. 165-66, Jung escreve que “no exercício de sua profissão, um médico vai se deparar com pessoas que também terão um grande efeito sobre ele. Encontrará personalidades... cujo destino é enfrentar situações e desastres sem precedentes. Às vezes são pessoas de extraordinários talentos, que poderiam perfeitamente inspirar outros a darem a vida por elas, mas esses talentos podem estar implantados numa disposição psíquica tão estranhamente desfavorável que não conseguimos dizer se é uma questão de gênio ou de desenvolvimento fragmentário. Frequentemente, também, nesse solo improvável, brota da psique uma flor rara que jamais imaginaríamos encontrar pelas planícies áridas da sociedade”. Isso me parece uma referência a Gross e possivelmente também à Sabina Spielrein, nenhum dos quais é mencionado no livro.] - Jung, o místico: a dimensões esotéricas da vida e dos ensinamentos de C. G. Jung: uma nova biografia. - Gary Lachman. Cultrix, 2012, p. 84-87 e p. 253-54)
Muito bom ! Parabéns!
Quê riqueza de narrativa 🎉
Excelente iniciativa
🙂
Agradecida por escolher compartilhar saber útil.
Muito obrigado por disponibilizar esse rico material!
Disponha!
Ótima locução
Agradeço
que maravilhoso, muito obrigada pela iniciativa!
Obrigado por compartilhar
♥
Grata grata.
Excelente leitura! Gratidão!!!
Obrigado pelo trabalho!
Deus abençoe a você moça que leu esse livro tão necessário para nós. Obrigadíssimo
♡
🙏🙏🙏🌹
Muito obrigado, ótimo audiobook
(...). O congresso, contudo, foi um sucesso e um dos oradores era um personagem excêntrico que teria sobre Jung a influência tão grande quanto a melancólica Sabina. Otto Gross era filho do juiz e criminologista Hans Gross, cujas palestras foram assistidas pelo escritor Franz Kafka; as ideias de Hans Gross sobre “tipos criminosos” degenerados - aqueles que ainda não tinham cometido um crime, mas estavam prontos a cometê-lo, um tema atualizado em “The Minority Report” [A Nova Lei], de Philip K. Dick - podem ser percebidas no perturbador romance de Kafka O Processo, sobre um homem que é preso mas nunca descobre por quê (Hans Gross também teve um vínculo com Jung, quando Jung acusou dois de seus alunos de tentarem ficar com crédito pela utilização do teste de associação de palavras para determinar a culpa). Otto Gross ficou desgostoso com as opiniões autoritárias do pai e se lançou em defesa de uma série de ideias “libertárias”, de forma mais contundente, o “amor livre”; foi pai de vários filhos ilegítimos e usuário de morfina e cocaína. Estava também gravemente perturbado: recusava-se a tomar banho, usava diversas camadas de roupa mesmo no tempo mais quente, falava rápido, numa torrente de ideias grandiosas, encorajava o uso de narcóticos por outras pessoas e chegaram inclusive a dizer que forneceu veneno a uma mulher suicida.
Gross era frequentador habitual da decadente café society boêmia do distrito de Schwabing, em Munique - uma espécie de Haigh-Ashbury [bairro de San Francisco. Foi o berço do movimento hippie nos anos 1960, nos Estados Unidos. (N. T.)] no início do século XX - e adotou as ideias sociais radicais que estavam em voga no Monte Verità, a “Montanha da Verdade”, uma comunidade alternativa pioneira estabelecida em Ascona, na Suíça, em 1900 onde, como sustentou o historiador Martin Green, “a contracultura nasceu” [Martin Green, Mountain of Truth: The Counterculture Begins, Ascona 1900-1920 (Hanover e Londres: University Press of New England, 1986); ver também minha A História Secreta da Política Ocidental: A Direita, a Esquerda e a Influência da Maçonaria e de Outras Sociedades nos destinos da Humanidade, publicado pela Editora Cultrix, São Paulo, 2010]
Pessoas notáveis como Hermann Hesse, Rudolf Steiner, Isadora Duncan e muitos outros fizeram a trilha de Monte Verità para experimentar a cura natural, praticar o nudismo (menos Steiner), meditar, cultivar suas próprias verduras, desfrutar o “amor livre” ... Gross foi inicialmente atraído para a psicanálise... Na conferência Gross sustentou que as ideias de Freud poderiam ser usadas como base para uma revolução cultural, afirmando que uma sociedade sexualmente liberada estaria livre da neurose, antecipando sob muitos aspectos a mistura freudiana-marxista tornada popular nos anos 1960 por Herbert Marcuse. Como fez R. D. Laing, Gross sustentou que a doença era uma resposta apropriada a uma sociedade repressiva e não tentou esconder suas próprias excentricidades na conferência. (...).
Foi como médico, contudo, que Jung conheceu Gross, quando Freud mandou o jovem rebelde para o Burgholzli, depois do pai dele lhe pedir que curasse Gross de seus vícios. Jung ficou a princípio desconsertado com as ideias de Gross sobre a liberação sexual, acreditando que a repressão sexual era necessária à civilização. O carisma de Gross, porém, logo superou a antipatia de Jung e o próprio suíço acabou achando que o anárquico Gross era como um irmão gêmeo. Passava horas com ele, tirando o tempo de outros pacientes e os dois começaram a analisar um ao outro. Certa vez, como aconteceu em sua primeira conversa com Freud, Jung conversou com Gross por doze horas seguidas. Gross introduziu Jung nas ideias que absorvera nos cafés de Schwabing [para Gross, Schwabing e Monte Verità ver O Culto de Jung, de Richard Noll (Londres: Fontana Press, 1996); para Schwabing ver David Clay Large, Where Ghost Walked: Munich’s Road to the Third Reich (Nova York: W. W. Norton, 1997), pp. 3-42] e entre os adoradores do Sol no Monte Verità, entre elas o paganismo e a noção de uma antiga sociedade matriarcal, que fora defendida por Johann Bachofen, um baliseano como Jung. Apesar de um tanto puritano, Jung se viu questionando toda a sua atitude com relação à vida, à sociedade, ao casamento e à família; Gross, por sua vez, diminuiu o consumo de drogas e tentou viver sua vida com um pouco mais de estabilidade.
Jung sentiu que a análise fora bem sucedida e que Gross estava melhorando, mas logo percebeu que Gross era um exemplo do que chamaria mais tarde de puer [De puer aeternus, eterna criança. (N. T.)], uma espécie de eterno jovem, uma personalidade Peter Pan, incapaz de aceitar as responsabilidades de ser adulto. Gross provou que ele estava certo quando, incapaz de resistir à ânsia por drogas, escalou um muro e fugiu do asilo psiquiátrico. Jung jamais tornou a vê-lo. Depois de ter sido internado à força pelo pai, durante algum tempo, em outra situação psiquiátrica, Gross morreu sozinho e sem teto num subúrbio de Berlim, em 1920. Jung ficou esmagado pelo que via como uma tradição de Gross. Essa foi sua primeira derrota. Contudo, Gross indiscutivelmente mudou Jung. Em primeiro lugar, foi após o encontro dos dois que Jung abandonou seus escrúpulos e, ao que tudo indica, tornou-se amante de Sabina. Suas tendências polígamas tinham irrompido, incitadas pelas pulsões de Gross, e o respeitável Jung se viu como um defensor da rebelião; ... Sob muitos aspectos, a determinação de Jung em “tornar-se quem ele era” e em ajudar outros a fazer o mesmo pode ser relacionada ao breve, mas intenso, contato com Otto Gross. [Em Memórias, sonhos, reflexões pp. 165-66, Jung escreve que “no exercício de sua profissão, um médico vai se deparar com pessoas que também terão um grande efeito sobre ele. Encontrará personalidades... cujo destino é enfrentar situações e desastres sem precedentes. Às vezes são pessoas de extraordinários talentos, que poderiam perfeitamente inspirar outros a darem a vida por elas, mas esses talentos podem estar implantados numa disposição psíquica tão estranhamente desfavorável que não conseguimos dizer se é uma questão de gênio ou de desenvolvimento fragmentário. Frequentemente, também, nesse solo improvável, brota da psique uma flor rara que jamais imaginaríamos encontrar pelas planícies áridas da sociedade”. Isso me parece uma referência a Gross e possivelmente também à Sabina Spielrein, nenhum dos quais é mencionado no livro.] - Jung, o místico: a dimensões esotéricas da vida e dos ensinamentos de C. G. Jung: uma nova biografia. - Gary Lachman. Cultrix, 2012, p. 84-87 e p. 253-54)
por favor tem mais narrações por essa moça ? precisava muito
Oi Vicente, boa tarde. Não entendi.